O governo de Dilma Rousseff dá sinais de adesão às ideias desenvolvimentistas, mas não deixa claro o seu projeto estratégico. No lugar de reforçar processos produtivos tradicionais, seria necessário investir em setores de ponta e definir prioridades.
A avaliação é de Pedro Cezar Dutra Fonseca, 58, professor de economia brasileira da UFRGS e doutor pela USP. Estudioso das experiências desenvolvimentistas no mundo e no Brasil, ele diz que não é correto olhar apenas para o PIB na hora de considerar se uma gestão é desenvolvimentista.
Para ele, apesar do baixo crescimento, Dilma está mais próxima do que Lula do conceito de desenvolvimentismo --que abarca intervenção estatal, industrialização e um projeto nacional.
Nesta entrevista, concedida por telefone desde Porto Alegre, ele analisa os desafios da economia brasileira e comenta os diferentes governos sob o prisma do desenvolvimentismo.
Folha - O governo Dilma é desenvolvimentista?
Pedro Cezar Dutra Fonseca - Ela tem afinidade histórica com o desenvolvimentismo. Outra coisa é a ideologia do governo, onde sempre há uma coalizão mais ampla. Para se dizer que um governo é desenvolvimentista ou não, não se pode olhar só as taxas de crescimento.
O governo Goulart foi desenvolvimentista, mas suas taxas de crescimento foram baixíssimas, porque havia uma crise política muito séria. No caso Dilma, a crise internacional e a baixa demanda da China prejudicaram o Brasil.
Olhando só a taxa de crescimento, podemos ter um falso positivo ou um falso negativo em relação ao desenvolvimentismo. Um falso positivo: um governo que cresceu muito, mas por causa de conjuntura internacional. Um falso negativo: é o caso Dilma. Ela mostra que está empenhada com o crescimento econômico, mas não consegue viabilizá-lo em razão da conjuntura externa.
O governo deu várias mostras de que quer alavancar a economia, muito mais do que Lula: isenção de impostos, conversa com empresários, reforma dos portos, infraestrutura etc.
Mostra sinais fortes de ser afinado com o desenvolvimentismo: na política monetária, na tributária, na cambial. O real teve uma desvalorização de mais de 20%, o que desafoga um pouco a indústria. Mas esses sinais fortes não se refletem nas taxas de crescimento.
Como é possível considerar desenvolvimentista um governo em que a indústria encolheu? Qual seu conceito de desenvolvimentismo?
Para mim, a indústria está no núcleo do conceito. Tem que haver uma política econômica, uma intervenção do Estado consciente e deliberada. Não uma intervenção sem querer: há uma crise e o governo intervém, como na Europa. Isso não é desenvolvimentismo. É uma política reativa.
No desenvolvimentismo há uma política pró-ativa com o objetivo de desenvolver o país. É um projeto nacional com um objetivo deliberado, que, por via do aumento da produção e da produtividade vai atingir determinados fins. Os fins podem variar. No governo militar, o objetivo era a autonomia nacional, a soberania do Brasil potência. Em governos de esquerda pode ser a distribuição de renda.
Existe desenvolvimentismo de direita e de esquerda. É diferente de um projeto distributivista ou socialista. Na Venezuela há um projeto de distribuição de renda que não é desenvolvimentista. Seria se o dinheiro do petróleo fosse usado para industrializar e mudar a estrutura produtiva do país.
Mas é correto atribuir o baixo crescimento só a fatores externos? O governo não tomou medidas que seguraram a produção? E o aumento de juros?
Qualquer governo desenvolvimentista não se nega a fazer ajustes quando há uma ameaça de inflação alta. Isso é um mito que a ortodoxia criou. Dizem que o desenvolvimentismo gera caos. Não é verdade. O Brasil cresceu muito mais na era do desenvolvimentismo, dos anos 1930 a 1980, do que depois e isso não levou a caos. Não é porque o governo em determinado momento elava juro e faz ajuste que ele deixa de ser desenvolvimentista.
Celso Furtado, quando viu a inflação crescer decidiu não dar aumentos e cortar gatos. O cara é desenvolvimentista, mas não é louco, não vai quebrar o país. A primeira coisa do desenvolvimentismo é ter um Estado saneado para poder crescer. Porque o Estado é um ator relevante. O desenvolvimentista pode subir o juro se há uma ameaça de inflação. Historicamente todos fazem isso.
Getulio Vargas, o símbolo do desenvolvimentismo brasileiro e o mais odiado pela direita liberal, quando assumiu em 1951, disse que era necessário primeiro fazer o ajuste para depois crescer. Havia um problema de balanço de pagamentos com uma inflação altíssima.
No ajuste, não houve aumento para os funcionários públicos e para o salário mínimo naquele ano. Ele cortou gastos e aumentou impostos para reequilibrar o orçamento. No outro ano ele pode fazer o crescimento. A diferença é que, para o ortodoxo, a estabilidade é um fim em si mesmo. É a ideia de que, se as finanças estiverem em ordem, o mercado vai responder com crescimento. Para o desenvolvimentista, isso precisa ser induzido.
Dilma é mais desenvolvimentista do que Lula?
Ela dá sinais mais visíveis do que Lula. Talvez até porque Lula pegou o efeito China e não precisou fazer essa indução. Lula é um que pode chegar num falso positivo para desenvolvimentismo.
E a indústria?
O maior gargalo para escrever que é desenvolvimentista é a questão da indústria. Porque ela vem perdendo posição, mais do que outros países e mais do que a média da América Latina. Isso é um gargalo. Se realmente há um projeto de longo prazo, não vai ser como o dos anos 1950. Naquela época o projeto era construir o parque industrial.
Agora é muito mais modernizá-lo e ir para segmentos de ponta, buscar um espaço nos segmentos de alta tecnologia. O que eu acho mais problemático para afirmar o desenvolvimentismo é que o governo quer que a economia cresça, independentemente de setores. A ideia de que não é um projeto de estratégia.
O governo não tem projeto de estratégia?
O governo dá sinais de desenvolvimentismo porque parece que tem um projeto de aumento de crescimento de produtividade, que vai fazer via intervenção. Tem tomado medidas para isso. Mas a dúvida é se esse projeto do governo é de mero crescimento para, por exemplo, sustentar o emprego. Ou se é um projeto estratégico para o futuro do país. A estratégia hoje não é só indústria, mas passa pela indústria, pela alta tecnologia.
Quais são os segmentos em que o Brasil vai ingressar no mercado internacional? Aviões? Não é só vendendo matéria prima bruta. O único desconforto que eu sinto em chamar o governo de desenvolvimentista passa por uma clareza --não estou afirmando sim ou não-- em relação a uma estratégia de longo prazo com relação à industrialização do país.
Se o Brasil só crescer sem essa estratégia, não significa desenvolvimentismo. Pode ser uma mera reação à crise. Isso governos keynesianos fazem; Obama está fazendo. Governo desenvolvimentista não é só intervencionismo keynesiano, que é um intervencionismo para se contrapor ao ciclo. O desenvolvimentismo é mais do que isso.
Tem essa intervenção, mas ela propõe um projeto de longo prazo. Nos anos 1950 era industrializar com bens de consumo, depois bens de capital. Hoje não é meramente reproduzir o padrão tecnológico, mas fazer junto uma inovação para ramos novos de ponta.
Assim, o ministério de ciência e tecnologia deveria ser mais estratégico, mais vinculado ao projeto econômico do país. Nos anos 1950, a ideia era industrializar o país mesmo que a tecnologia não fosse de ponta. Hoje a questão tecnológica entrou para a ordem do dia.
O governo deveria ter um projeto de industrialização de longo prazo?
A indústria é o segmento da economia que permite as grandes inovações. Nos anos 1950 ou no tempo de Geisel, a economia fechada e industrialização era para substituir importações. O ortodoxo acha que industrialização caiu da moda porque não é mais substituição de importações. Não é verdade. Claro que não é mais substituição de importações; é outro tipo de industrialização. É para produzir coisas que nem se importa.
Proponho que o Brasil faça tecnologia. Tem que olhar para a frente em direção ao novo.
E o apoio estatal é necessário?
Como em qualquer lugar do mundo. Não pense que os EUA privatizam a NASA. Em menor ou maior grau, isso envolve uma parceria do Estado com o setor privado. A indústria nacional se constituiu dessa forma, com o BNDES tendo um papel importante. Cabe ao BNDES ver quais os setores são estratégicos para o país.
Hoje parece que às vezes é mais um projeto de crescimento do que um projeto estratégico de longo prazo.
O projeto estratégico não está aparecendo?
Exatamente. Há sinais, embora ainda não seja totalmente visível. O governo Dilma lembra o desenvolvimentismo se compararmos aos anteriores. Em relação ao período FHC e à primeira fase de Lula, ele da sinais mais claros: na política cambial, na monetária, na fiscal.
O crescimento do governo Lula sugere muito que não era por um projeto estratégico, mas um efeito da conjuntura.
Quais são os pontos definidores do desenvolvimentismo?
Intervencionismo, industrialização e um projeto. O projeto parece existir por essas políticas que mencionei. Dilma diz que quer fazer crescer a indústria. Beneficiou vários setores, inclusive o automobilístico, para não cair a produção industrial, reproduzindo o atual padrão tecnológico.
Alavancar a demanda e o crescimento para não parar de crescer é desenvolvimentismo? É, mas para ser desenvolvimentista mais tranquilamente, teria que apontar quais são os setores estratégicos.
Tudo isso posto, Dilma é desenvolvimentista?
Sim, porém ainda falta alguma coisa. Falta a estratégia de industrialização dentro do projeto. Há sinais desencontrados.
Sobre FHC eu diria: não é desenvolvimentista. Porém, ele criou bolsas, não ignorou totalmente os pobres. O primeiro governo Lula é muito mais para o lado da estabilidade e não tem quase nada de desenvolvimentismo. Ele mantém o tripé do FHC: superávit primário, da taxa de câmbio valorizada, da taxa de juro alta. Tinha uma estabilização como a do FHC. Não sou contra isso. Minha ideia é que estabilidade não se basta.
No desenvolvimentismo, a ideia é ter estabilidade para alavancar uma coisa melhor. A estabilidade é condição necessária, mas não suficiente. O governo Lula deixa muito mais dúvidas do que o de Dilma.
Na primeira fase ele claramente não é desenvolvimentista. Na segunda há crescimento e distribuição de renda. Não tenho uma resposta definitiva, porque ainda estou estudando. Não sei até que ponto isso não ocorreu por uma lógica não intencional do governo, o efeito China. O que foi claramente do Lula foi o aumento salarial, foi vontade dele. Não sei se era por uma questão desenvolvimentista, ou se era por uma questão política. Um governo aumentar salário pode ter sensibilidade social. Isso não quer dizer desenvolvimentismo.
Hugo Chávez aumentou salário e não é desenvolvimentista. Falta a estratégia.
Quais são os sinais desencontrados do governo Dilma?
Não tem um sinal claro de avanço baseado na tecnologia ou setores de ponta. Quando se isenta a indústria automobilística, o sinal que é dado é: vamos produzir automóvel, o que é o padrão dos anos 1960, 1970. Isso não é desenvolvimentismo. Isso é não deixar cair o PIB simplesmente. Aí acho que falta estratégia. É esse o setor que tem que ser alavancado hoje para o país dar um salto na sua produção e produtividade?
No meu conceito de desenvolvimentismo, é preciso alavancar produção e produtividade. Não é simplesmente aumentar a produção. Os velhos cafeicultores paulistas também queriam aumentar a produção de café. Nem por isso eram desenvolvimentistas.
Manter o mesmo padrão que está aí não é desenvolvimentismo. Porque é preciso ter essa ideia de futuro. Os sinais são contrários.
Às vezes parece que o governo está no BNDES e na política cambial fazendo sinais, e em outros não. Ou pelo menos está omisso. Não dá sinais claros.
O que deveria ter sido feito no lugar do subsídio para carros?
Até pode dar um subsídio emergencial, mas tem que dizer o seguinte: quais são os setores que o Brasil vai eleger como política industrial, o que é necessário para alavancar um crescimento de longo prazo, das exportações.
Não vamos ficar a vida inteira exportando soja em grão para a China. Não é esse o padrão. O que vamos fazer? Qual é a estratégia? O governo chinês tem estratégia: inundar de produtos de baixa tecnologia, intensiva em mão de obra, e um projeto. Dificilmente o Brasil vai conseguir para concorrer com a China. Tem que eleger setores e isso não está claro.
Acho que o desenvolvimentismo hoje supõe uma política industrial, não é uma mera questão cambial. Não é exportar com o padrão que está aí. Seria pensar estrategicamente. Se deveria ir para os bens de ponta, não para produzir bens de consumo popular.
Mas seria injustiça dizer que não existe mudança. Mas há sinais erráticos. Não há essa questão da estratégia. O crescimento baseado em consumo sem passar pelo investimento e por essa produtividade não é uma coisa típica do desenvolvimentismo. Nele, há crescimento do consumo alavancado pelo crescimento da produção e produtividade.
Sou a favor do desenvolvimentismo com distribuição de renda. Mas só distribuição de renda não quer dizer desenvolvimentismo.
A coisa mais definidora da minha pesquisa é essa questão do projeto e da intencionalidade. Uma estratégia de longo prazo. É válido distribuir renda com base no consumo, mas é difícil sustentar no longo prazo.
A China é desenvolvimentista, tem um projeto nacional, é consciente, mobiliza a população, se volta para o aumento da produção e da produtividade. O governo da China sabe o que quer; o brasileiro parece que sabe, mas há sinais desencontrados.
Como se comportaram os governos brasileiros no século 20 do ponto de vista do desenvolvimentismo?
Na década de 1930, houve uma enorme intervenção do Estado e a inflação era razoavelmente baixa. Depois, sobe um pouco, por efeito da guerra.
Nos anos 1950, começa com uma inflação sob controle no padrão brasileiro. A inflação vai explodir antes de 1964, quando ocorre uma enorme crise política. Depois, a inflação baixa com o governo militar. Sobe nos anos 1970, com o choque do petróleo.
Quase todos os governos militares são desenvolvimentistas. Castelo Branco é dúvida; há sinais desencontrados. Mas os sinais são claros com Médici, Costa e Silva e Geisel. Geisel era claramente desenvolvimentista. Era um desenvolvimentismo autoritário, com concentração de renda. Mas Delfim Netto tinha uma estratégia para o país.
Minha definição de desenvolvimentismo deixou muitas pessoas, inclusive na Unicamp, desconfortáveis, porque queriam que eu colocasse no conceito que desenvolvimentismo a questão da distribuição de renda. E os ecologistas queriam que eu colocasse que tem que preservar a natureza. Não vou fazer isso porque não é verdade.
Tem desenvolvimentismo que preserva e que não preserva a natureza. Tem desenvolvimentismo que distribui renda e outros que não o fazem. O conceito da coisa tem que ser geral para abranger os casos.
Fonte: Folha de S. Paulo
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