Na dilapidada capital venezuelana, a maioria dos preços sobe todo mês e alimentos essenciais, como leite e farinha, são difíceis de encontrar. Mas há um produto que está em toda parte e é praticamente grátis: a gasolina.
A gasolina premium na Venezuela custa perto de US$ 0,06 por galão (R$ 0,03 por litro), pela taxa de câmbio oficial. Mas, pela taxa de câmbio informal que prevalece na maioria das transações, ela ainda fica cerca de quatro vezes mais barata.
Octavio Fernández enche o tanque do seu táxi Nissan Sentra por menos de metade do preço de um "marroncito", ou cafezinho. Às vezes ele gasta mais com gorjetas para os frentistas do posto do que com o próprio combustível. "É a única coisa barata que temos aqui", disse o imigrante espanhol, de 77 anos.
Nos 14 anos de governo do falecido presidente Hugo Chávez, a Venezuela manteve os preços da gasolina congelados mesmo quando um aumento nos gastos públicos estimulou uma inflação generalizada. A gasolina passou, então, de barata para quase gratuita.
O subsídio é um símbolo da política econômica populista de Chávez. Através de medidas como fornecer gasolina e óleo diesel quase de graça, ele ganhou enorme popularidade. Mas prejudicou as perspectivas de longo prazo da economia venezuelana e a deixou sujeita a graves problemas nos próximos anos.
Agora a Venezuela está prestes a escolher um novo presidente. E as distorções econômicas causadas pela gasolina barata surgem como uma das principais crises que o vencedor da eleição de domingo terá que enfrentar.
O subsídio aos combustíveis também explica por que a Venezuela se encontra numa situação incomum: um grande exportador de petróleo com uma escassez crônica de caixa. O déficit orçamentário do país chegou a 12% do PIB no ano passado, segundo o Moody's MCO +0.29% Investors Service, pior que nas combalidas economias da zona do euro. A falta de dólares provocou escassez de produtos importados, enquanto controles de preços desencorajam a produção local de muitos bens.
A crise de liquidez implica que a grande petrolífera estatal, a Petróleos de Venezuela SA, ou PDVSA, investe muito pouco para desenvolver plenamente seu potencial. Se a companhia pudesse cobrar mais pela gasolina consumida no país, teria mais recursos para aplicar em coisas como manutenção de refinarias. Em setembro, uma explosão com vítimas fatais na sua refinaria gigante Amuay deixou parte do complexo inativo desde então.
A produção de petróleo caiu 25% em relação ao nível de 1998, o ano anterior à subida de Chávez ao poder.
Ao mesmo tempo, o consumo interno de gasolina e outros produtos refinados aumentou 65% de 1998 a 2011, segundo a Administração de Informações sobre Energia dos EUA. Em comparação com a vizinha Colômbia, onde prevalecem preços de mercado, os venezuelanos consumiram quase sete vezes mais gasolina per capita.
Esse fato, além da precariedade da rede de refinarias, faz com que o país com as maiores reservas mundiais de petróleo precise importar gasolina.
Um economista venezuelano, Orlando Ochoa, estima que a Venezuela gastou US$ 7,2 bilhões com importações de combustível em 2012.
Os subsídios aos combustíveis, estima a Agência Internacional de Energia, custaram à Venezuela US$ 27 bilhões em 2011, quantia equivalente a 8,6% do PIB. Os gastos públicos com saúde foram de 3,25% do PIB em 2011 e os com educação, de 5,1%.
Assim, os subsídios à gasolina reduzem os gastos com serviços básicos como manutenção da infraestrutura e combate à criminalidade, diz Michael Shifter, presidente do Diálogo Interamericano, um centro de estudos de Washington. Para ele, essa política "é totalmente contrária aos projetos estatais de construção, que são do que a Venezuela precisa desesperadamente". Isso não significa que política atual deve mudar. Muitos cidadãos venezuelanos veem a gasolina barata — que, de uma forma ou de outra, tem sido a política oficial desde muito antes do governo Chávez — como sua justa parte da prodigiosa riqueza petrolífera do país. É um benefício raro num país às voltas com inflação em alta, escassez de bens e um dos piores níveis de criminalidade do mundo.
Embora algumas autoridades do governo critiquem a política oficial, nenhum dos dois candidatos à sucessão de Chávez, o presidente interino Nicolás Maduro e o opositor, Henrique Capriles, está falando em aumentar o preço dos combustíveis.
"Isso se tornou algo intocável na política venezuelana", disse Russ Dallen, sócio do banco de investimento Caracas Capital Markets.
Executivos da estatal PDVSA, que administra os subsídios, não responderam a pedidos de comentários.
A Venezuela não está sozinha na sua política energética populista. Muitos países em desenvolvimento adotaram a mesma linha, buscando melhorar as condições de vida, apoiar as indústrias domésticas com uso intensivo de energia ou simplesmente manter feliz uma população inquieta.A Agência Internacional de Energia estima que governos em todo o mundo gastaram US$ 523 bilhões em subsídios aos combustíveis fósseis em 2011. A lista é encabeçada pelos países petrolíferos do Oriente Médio, como Arábia Saudita, e inclui os emergentes China, Índia e Brasil. O FMI estimou uma quantia semelhante, de US$ 481 bilhões, num relatório recente. Os números se baseiam na diferença entre os preços de mercado e os preços subsidiados.
Os subsídios têm seu lado positivo. Eles ajudaram a população pobre de alguns países em desenvolvimento a ter mais acesso à energia. No Iêmen, eles reduziram o nível de pobreza em 8% entre 2005 e 2006, segundo um relatório de 2010 feito por grupos que incluíam a Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico. Os subsídios também deixam mais dinheiro no bolso dos cidadãos.
Os que criticam os subsídios aos combustíveis dizem que a maior beneficiária é a classe média, que tem carro, e que os preços artificialmente baixos incentivam o desperdício. O tema tem sido muito debatido nos eventos sobre mudanças climáticas. Um estudo da OCDE concluiu que, se os subsídios aos combustíveis fósseis fossem eliminados, as emissões de gases estufa poderiam cair em 10% até 2050.
Os efeitos da abundância de gasolina na Venezuela chegam ao outro lado da fronteira. Na vizinha Colômbia, a gasolina custa em torno de US$ 4,70 o galão, mais de 100 vezes o preço na Venezuela pela taxa de câmbio oficial e mais de 400 vezes pela informal.
Resultado: todos os dias, na cidade venezuelana fronteiriça de San Antonio del Táchira, milhares de veículos recém-abastecidos trafegam em direção à Colômbia, esperando horas nos engarrafamentos. Ao chegar lá, o combustível é retirado dos veículos por pessoas conhecidas como "pimpineros" (da palavra em espanhol para latão de gasolina), que pagam cerca de US$ 2 por galão aos motoristas e revendem a gasolina na Colômbia por um pouco mais.
A Venezuela reprimiu o contrabando dois anos atrás, estabelecendo um limite em torno de 42 litros de combustível a cada dois dias para os carros do Estado fronteiriço, por meio de adesivos no pára-brisa com códigos de barras que são lidos pelos postos de gasolina. Isso funcionou até certo ponto e as compras de combustíveis em Táchira diminuíram. Os "pimpineros" dizem que muitos veículos contrabandistas, que costumavam fazer várias viagens por dia, agora só fazem uma ou duas.
Mas, apesar do combate ao contrabando, a relutância em lidar com o subsídio ao combustível continua enraizada na classe política da Venezuela. Embora o ex-presidente Rafael Caldera tenha conseguido aumentar o preço dos combustíveis em 1996, os políticos não esqueceram a revolta popular que outra tentativa semelhante provocou alguns anos antes.
Em 1989, depois que um período de preço baixo do petróleo causou uma crise orçamentária, o então presidente Carlos Andrés Pérez cortou os subsídios à gasolina, provocando aumentos nas passagens de ônibus e deflagrando vários dias de tumultos. O exército restaurou a calma, mas às custas de centenas de vidas.
O incidente, conhecido como El Caracazo, afetou profundamente o moral dos soldados que tiveram que atirar na população. E ajudou a motivar Chávez, então um jovem oficial do exército, a empreender uma fracassada tentativa de golpe contra Pérez três anos depois. Seguiram-se anos de instabilidade, ao fim dos quais Chávez chegou à presidência.
Nos últimos anos, as autoridades venezuelanas parecem ter adotado uma postura ao mesmo tempo passiva e agressiva em relação ao subsídio. O ministro da Fazenda, Jorge Giordani, já se manifestou publicamente contra. "As doações devem parar por aqui; as pessoas têm que pagar", disse Giordani na televisão estatal no fim de 2012. Mesmo assim, não há planos para eliminar o subsídio, disse um representante do ministério.
O próprio Chávez criticou certa vez o subsídio. "Um dia, teremos que ajustar esses preços. Estamos praticamente dando a gasolina de presente", disse Chávez em seu programa de televisão "Alô Presidente", em 2009. Mas ele também nunca tomou iniciativas para mudar a situação.
Para cobrir o buraco nas receitas causado pelo subsídio, a Venezuela vem assumindo cada vez mais dívidas. Apesar da abundância de petróleo, o passivo total do país, que era de US$ 28 bilhões quando Chávez assumiu o poder, saltou para mais de US$ 167 bilhões no fim de 2012, segundo dados do Banco Central e do Ministério da Fazenda e Planejamento do país. O valor inclui a dívida externa e a dívida interna, além de um contrato para fornecimento de petróleo para a China que Pequim pagou adiantado.
Se os preços do petróleo permanecerem como estão e a Venezuela não fizer ajustes importantes, o governo pode se deparar com uma situação financeira intransponível dentro de uns dois anos, diz Asdrúbal Oliveros, economista da consultoria Ecoanalítica, de Caracas. A produção petrolífera estagnada, a inflação e o enxugamento das reservas cambiais podem deixar o Estado incapaz de funcionar, diz ele.
Fonte: The Wall Street Journal
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