Economista, Especialista em Economia e Meio Ambiente pela Universidade Federal do Paraná e Graduando em Estatística, também, pela Universidade Federal do Paraná.

sexta-feira, 12 de julho de 2013

País está pronto para o ajuste externo, mas haverá impacto na renda real

De abril de 2007 ao mesmo mês de 2013, o Brasil sofreu uma deterioração nas contas-correntes de 4,23 pontos percentuais do PIB. O país saiu de um superávit acumulado em 12 meses superior a 1% para um déficit de 3%. Para uma economia em que a fragilidade externa provocou, ao longo da história, inúmeras crises de balanço de pagamentos, com paradas bruscas de financiamento internacional, uma mudança nas contas-correntes dessa magnitude merece ser cuidadosamente analisada.

Um primeiro aspecto a ser ressaltado é que o Brasil de hoje parece bem mais robusto em termos macroeconômicos, e com uma política econômica superior à do passado não muito distante. As reservas internacionais de US$ 370 bilhões dão ao país munição para acomodar paradas bruscas de fluxos de capital, mas a arma principal é o próprio câmbio flutuante, que permite que os preços relativos se ajustem para atender às novas condições externas.

Além disso, a estrutura do passivo externo brasileiro hoje é melhor do que a que prevalecia durante as crises externas de nossa história no pós-guerra. O estoque de investimento estrangeiro direto corresponde à quase metade do passivo, no qual estão incluídos ainda carteiras de ações nas bolsas brasileiras e títulos de renda fixa nacionais em posse de residentes externos. Todas essas rubricas são denominadas em reais, e, num episódio de saída brusca de capitais, em que o real tende a se depreciar, contribuem para reduzir o passivo externo — tendo, portanto, uma característica contracíclica importante em momentos mais complicados de financiamento internacional.

De forma complementar, a dívida em moeda externa total, do setor público e privado, é menor do que as reservas internacionais. Assim, o Brasil é credor líquido em moeda estrangeira, e a posição financeira do país se fortalece quando o dólar se valoriza — o que inverte a situação do passado, que propiciou tantas crises.

Todos esses avanços, em termos de resistência do país a oscilações mais fortes das condições de financiamento externo, não significam que um ajuste brusco da conta-corrente seja indolor. Na verdade, um processo desse tipo sempre significa uma redução da absorção, isto é, da soma do consumo e do investimento, no curto prazo. Numa linguagem popular, é o equivalente, para um país, de “apertar o cinto”.

Conjuntura recente - Do ponto de vista político, administrar um ajuste de conta-corrente está longe de ser tarefa trivial. No caso brasileiro, ainda há muitas dúvidas sobre o desenrolar dos acontecimentos a curto e médio prazo. A forte e persistente desvalorização do real nas últimas semanas parece indicar que algum tipo de ajuste já está em curso. Alguns fenômenos simultâneos podem estar contribuindo para isso.

O primeiro é a própria expansão acelerada da absorção da economia brasileira no período pós-crise global, que pode ter acontecido num ritmo superior ao que seria suportado de forma sustentável pelo crescimento potencial da economia. Outra forma de olhar para o mesmo processo é considerar que a deterioração da conta-corrente, de mais de quatro pontos percentuais do PIB em seis anos, foi a válvula de escape que permitiu um ritmo insustentável de expansão do consumo e do investimento, sem que a inflação tenha sido ainda maior do que de fato foi. Assim, evitou-se que o IPCA varasse o teto de 6,5% da margem de tolerância da meta no ano calendário, embora tenha se aproximado dele, ao custo de um aumento médio anual do déficit em conta-corrente de aproximadamente 0,7 ponto porcentual do PIB, ao longo dos seis anos.

Uma questão correlata é a aparente redução do crescimento potencial brasileiro depois da crise global. Há fortes indicações de que isso tenha acontecido, ainda que não exista consenso sobre as causas. No segundo mandato de governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, a economia brasileira cresceu a um ritmo médio de 4,6%, mesmo com a leve queda de 0,3%, em 2009. A sensação era de que o crescimento potencial era de pelo menos 4%, e chegava-se a falar em números entre 4,5% e 5%.

Hoje, devido ao fraco desempenho em 2011 e 2012, combinado com sintomas de sobreaquecimento nos preços, nas contas externas e no mercado de trabalho, voltou-se a trabalhar com uma ideia de crescimento potencial por volta de 3% — analistas mais pessimistas veem percentuais ainda piores.

Há uma relação entre a velocidade de crescimento de uma economia e o déficit em conta-corrente sustentável. O problema causado pelo déficit com o resto do mundo é o aumento do passivo externo líquido. Por outro lado, o mais relevante para a estabilidade macroeconômica é impedir que o passivo cresça de forma descontrolada como proporção do PIB. Assim, uma maior expansão da economia permite que se importe mais poupança externa de forma mais segura. O corolário dessa constatação é que a provável redução do crescimento potencial do Brasil no período pós-crise também contribuiu para limitar o espaço da ampliação, sem maiores riscos, do déficit em conta-corrente.

A questão ficou mais aguda, porém, por coincidir com uma mudança das condições de liquidez internacional. Os sinais de melhoria da economia norte-americana levaram o Federal Reserve (Fed, o banco central dos Estados Unidos) a sinalizar que, num momento não muito distante, iniciará a redução do programa de compra de títulos de longo prazo em poder do público. Mais para o futuro, quando a retomada estiver ainda mais consolidada, a taxa de juros básica, hoje virtualmente em zero, começará a subir.

A simples percepção pelo mercado dessa estratégia de gradual redução, pela autoridade monetária norte-americana, do maior programa de expansão monetária da história, já foi suficiente para elevar a rentabilidade do título de dez anos do Tesouro dos Estados Unidos de um mínimo recente de 1,7%, em abril, para a faixa de 2,5% (quando esta Carta foi redigida). Esse movimento afetou profundamente os mercados brasileiros (e dos emergentes em geral), com desvalorização do real e alta dos juros futuros.

Paralelamente, as autoridades chinesas vêm consolidando a opção de aceitar um crescimento menos veloz, com teto de 8% ao ano, como preço para fazer uma transição de modelo, na direção de menos dependência do mercado externo e dos investimentos, e de um papel maior do consumo doméstico. A China mostra disposição também para corrigir distorções no mercado de crédito e apagar os focos de bolhas de ativos, especialmente imobiliários, com decisões duras na área monetária. Numa perspectiva mais longa, o arrefecimento do crescimento chinês (e de outros países da Ásia) deve afetar negativamente o preço das commodities, embora as minerais estejam mais suscetíveis do que as agrícolas.

Consequências no balanço de pagamentos - É dentro desse contexto amplo de interação de fatores internos e externos que os riscos do balanço de pagamentos brasileiro devem ser avaliados. Quando se analisa a virada de 4,23 pontos percentuais do PIB em seis anos (abril de 2007 a abril de 2013) para os dados acumulados em 12 meses, constata-se que 84% se referem ao pior resultado da balança comercial, 10% à balança de serviços e renda, com o restante sendo explicado pelas transferências unilaterais. É claro, portanto, que a piora deriva fundamentalmente do comércio de bens e serviços, e, portanto, da absorção.

É relevante notar que a piora dos bens e serviços aconteceu num período em que o Brasil registrou ganhos de termos de troca da ordem de 20%. Isso sugere que a economia recebeu fortes estímulos no período pós-crise. Além disso, a indicação é de que foi o crescimento da absorção, e não a mudança de preços internacionais, a principal causa da elevação do déficit em conta-corrente.

No quadro geral, pode-se dizer que o Brasil está diante de um provável ajuste do balanço de pagamentos, cuja intensidade vai depender do cenário externo. Algumas projeções de déficit em conta-corrente para 2014 já indicavam uma alta expressiva em relação a 2013, para o intervalo entre 3,5% a 4% do PIB. Esse aumento da importação de poupança, porém, pode ser contido, ou mesmo revertido, se o cenário de normalização monetária internacional se consolidar. A forte desvalorização do real das últimas semanas é um prenúncio desse processo.

O país está em condições de ajustar o balanço de pagamentos sem a ocorrência de crises como as do passado, graças à solidez dos fundamentos e à melhor política econômica. É inevitável, porém, que a absorção se reduza, com um impacto negativo inicial na renda real.

Perspectivas - De 1995 a 2011, há forte correlação, de 82%, entre o câmbio real e a renda média real medida pela Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad). De forma aproximada, variações de 10% no câmbio real corresponderam a oscilações de 3% na renda real média. Em 1996, com o câmbio apreciado, a renda média chegou a R$ 1.148. Em 2003, na esteira do pânico eleitoral causado pelo favoritismo e vitória do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, o rendimento caiu para R$ 929. Em 2011, ano em que o real chegou a uma máxima de US$ 1,54 e foi negociado o tempo todo abaixo de US$ 2, a renda real média foi de R$ 1.201. Fica claro, portanto, que, mantida a tendência de desvalorização do real, deve ocorrer um recuo na renda real.

O mais prudente neste momento é a preparação para a gestão clássica de um ajuste de balanço de pagamentos com câmbio flutuante. A primeira providência é deixar o câmbio flutuar, utilizando as reservas internacionais para evitar a exacerbação das tendências para além dos fundamentos, e para mitigar o excesso de volatilidade.

Um aumento inicial de inflação parece inevitável, à medida que o preço dos bens comercializáveis internacionalmente (tradables) suba relativamente aos não comercializáveis (non-tradables), o que nada mais é do que a desvalorização real da moeda. Mas é preciso que a política monetária seja firme para coibir os efeitos secundários, evitando que os non-tradables sejam contaminados pela alta dos tradables, demandando novas rodadas de desvalorização nominal e inflação.

Com o manejo adequado dos juros e de outros instrumentos acessórios à política monetária, é possível que o ajuste de preços relativos se faça de forma rápida e relativamente ordeira, com um salto inicial da inflação que seja logo corrigido.

O governo detém, portanto, os instrumentos e a capacidade operacional para fazer o Brasil navegar pelas águas mais agitadas da drenagem do excesso de liquidez internacional, sem rupturas no processo de amadurecimento econômico do país desde a década de 1990. É bastante provável, porém, que, no curto prazo — e talvez no médio — haja uma interrupção do crescimento da renda, do crédito e do consumo, que foi tão importante em termos sociais para o país.

Fonte: IBRE/FGV

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