O flerte da maior economia do mundo com a possibilidade de um calote em seus credores impulsionou questionamentos à credibilidade do dólar como a moeda por excelência do sistema econômico internacional.
Para analistas, a percepção de que os títulos soberanos americanos são um "porto seguro" foi corroída pela queda de braço entre democratas e republicanos no Congresso para autorizar o Tesouro a continuar rolando as suas dívidas a partir desta quinta-feira.
O debate sobre encontrar alternativas para uma moeda que assuma o papel vital que o dólar tem na economia mundial já existe há décadas, mas voltou com força desde que a polarização do Congresso americano passou a injetar volatilidade extra no sistema financeiro.
Atualmente, os Estados Unidos gozam de um status ímpar: podem chegar perto de decretar um default ao mesmo tempo que estampam a melhor classificação de risco possível para seus títulos soberanos – AAA –, reservada aos países com grande capacidade de pagar as suas dívidas.
A agência de classificação de risco Fitch questionou esse status ao colocar os títulos americanos em perspectiva "negativa" na quarta-feira.
A agência observou que as incertezas da última semana "arriscam afetar a confiança do dólar como moeda de reserva mundial por excelência, ao pôr em dúvida a boa fé e o crédito" do país.
Dois anos atrás, a agência Standard & Poors cumpriu o mesmo script diante de impasse semelhante no Congresso. A S&P rebaixou a categoria dos títulos soberanos americanos citando dificuldades no Congresso de "lidar com os desafios orçamentários de médio e longo prazo até 2013".
"Isso tornará, na nossa visão, o perfil fiscal dos Estados Unidos significativamente mais fraco que o de outros (títulos) soberanos (com classificação) 'AAA'", escreveu a agência à época.
Status privilegiado
O papel do dólar — e dos ativos denominados em dólar — na economia mundial é ilustrado pelos volumes da moeda que outros países mantêm em suas reservas internacionais, principalmente na forma de títulos soberanos.
Segundo o Fundo Monetário Internacional, os bancos centrais mantêm 62% das suas reservas internacionais — US$ 3,8 trilhões de um total de US$ 6,1 trilhões — em dólar.
Em comparação, o montante em euros alcança US$ 1,45 trilhão, ou 24% do total, de acordo com o FMI. A instituição notou que a proporção de euros nas reservas internacionais permanece abaixo do ápice atingido em 2009, quando 28% delas se compunham da moeda comum europeia.
Outro indicador importante: a moeda americana continua "sem competição" no mercado de câmbio, estimado em US$ 5,3 trilhões por dia pelo Banco de Compensações Internacionais em abril. O dólar era utilizado em 87% de todas as transações deste mercado.
"As nossas reservas são proporcionalmente mais concentradas no dólar porque é a moeda que todo mundo aceita", sintetiza o professor do Departamento de Relações Internacionais da PUC-SP Geraldo Zahran, coordenador de pesquisa do Observatório Político dos Estados Unidos (Opeu).
"Faz sentido pautar as suas reservas internacionais em dólar. Só que os americanos estão exaurindo a confiança que todo mundo depositou na economia deles. Se isso (as desavenças no Congresso) continuar, o que se imagina é que os países vão começar a buscar alternativas", ele acredita.
Que alternativa?
A grande questão é qual seria a alternativa à moeda americana no sistema internacional. Existe uma percepção, como definiu o megainvestidor George Soros, de que "o dólar é a moeda mais frágil (do mundo) à exceção de todas as outras".
Com o euro em crise - pelo endividamento e más perspectivas de crescimento de vários países da área que usa a moeda —, os analistas acreditam que o yuan chinês estaria em posição de oferecer uma alternativa à moeda americana.
Zahran diz que a China, um grande país exportador e importador, poderia começar a pressionar seus parceiros comerciais a aceitar a sua moeda em trocas de bens e serviços.
Entretanto, no momento, o yuan ainda não é amplamente aceito nas transações internacionais.
Já o iene japonês tem tido uma participação decrescente como moeda de reserva internacional (menos de 4% das reservas dos BCs), segundo o FMI.
Há alguns anos o FMI vem defendendo que seria possível implementar uma "moeda" baseada em seus Direitos Especiais de Saque (SDR, na sigla em inglês). Os SDR são instrumentos usados pelo Fundo para realizar empréstimos que podem ser convertidos em qualquer moeda nacional através de um câmbio calculado a partir de uma cesta de moedas.
Esta opção teria a vantagem de evitar um dilema econômico identificado pelo economista belga Robert Triffin em 1960, o de que "quando você atrela a moeda de reserva internacional a uma moeda nacional, você permite que esse país viva além das suas posses", como explica o professor Zahran.
"Você permite a esse país contrair dívidas indiscriminadamente porque todo mundo compra essa moeda."
Mudança gradual
No longo prazo, muitos analistas nos Estados Unidos não acham negativo o debate sobre encontrar uma alternativa para o dólar no sistema econômico mundial.
Mas qualquer que seja o caminho, todos concordam que seria uma mudança gradual.
Países como a China e o Japão, que juntos detêm mais de US$ 2,4 trilhões em títulos do Tesouro americano, não estão interessado em se desfazer dos seus papeis repentinamente e corroer o seu valor de mercado — o que causaria também uma redução no valor das suas reservas.
Impacto semelhante seria sentido no Brasil, que detêm US$ 256 bilhões em títulos dos Estados Unidos.
"No curto prazo, muito pouca coisa vai acontecer. Isso é algo para a gente ficar observando no médio e no longo prazo", diz Zahran.
"É interessante acompanhar como a China vai se posicionar, seus pronunciamentos e a variação das suas reservas", afirma o professor.
"Por outro lado, se os Estados Unidos botarem a casa em ordem e passarem a gastar menos do que arrecadam, a economia deles cresce, a relação dívida-PIB fica menor e o dólar volta a se fortalecer."
Fonte: BBC Brasil
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