Por Lívia Duarte
Em 2001, o dicionário Houaiss não dava nenhuma notícia do que poderia ser “economia verde” – ao contrário da economia de escala, de guerra, de mercado, de palitos, dirigida, doméstica, e muitas outras. Ainda agora, passados dez anos, o conceito não pode ser compreendido com a clareza dos dicionários. No entanto, já faz parte de documentos da ONU, acompanhados ou não da definição necessária aos conceitos que determinarão nosso jeito de viver. O documento “zero” da Rio+20 é um bom exemplo: o adjetivo “verde” acompanha o substantivo “economia” quase 40 vezes em 20 páginas. No entanto, não achamos ali a definição para o novo conceito.
As possíveis definições constam em outras peças diplomáticas e no discurso de corporações e governos. E não parecem apontar para um modo de viver radicalmente diferente do atual, mas para o aprofundamento da forma de produção e consumo dominante no mundo, que gera desigualdades entre países e povos, além de múltiplas crises, como a ambiental.
Pablo Sólon, que foi embaixador da Bolívia na ONU, lembrou que no momento da convocatória, a Rio+20 deveria ter sido, fundamentalmente, um espaço de avaliação dos avanços de cumprimento da Agenda 21 (acordada na Eco 92) e, quem sabe, motivadora de seu fortalecimento. A economia verde, no primeiro momento, era um tema em discussão. Algo secundário. Por pressões de diversos atores, especialmente países da União Européia, se transformou em central – mesmo, segundo Sólon, não tendo aceitação unânime entre as nações.
Na opinião dele, a falta de definição do termo “economia verde” para a Rio+20 é um enorme risco. E não considera que estejamos falando apenas de um novo slogan: “Os entusiastas dizem que economia verde é tudo: separar o lixo, indústrias limpas, estar com Pachamama, vender créditos de carbono, tudo isso pode ser economia verde. E por isso não definir esta economia no documento. Se aceitamos isso, assinamos um cheque em branco”, avalia o ex-embaixador, explicando que a Rio+20 não será o lugar de fechar tratados. “O que querem é o mandato para formular a arquitetura institucional necessária a criar este mercado de bens intangíveis. Depois, o processo vai se dar praticamente sozinho”, vaticina. E segue: “Se não temos uma posição categórica de repúdio à economia verde seremos cúmplices do lançamento de um dos maiores negócios de roubo da natureza que será lançado no Rio de Janeiro, em junho. É muito complicado porque há muitos interesses e um mercado multimilionário que não vai resolver nada, mas eles esperam, vai reverter as taxas decrescentes de lucro do sistema capitalista”.
E foi em busca de uma “outra economia” que representantes de entidades e movimentos sociais “críticos à economia verde” se reuniram no seminário “Rumo à Rio+20: Por uma outra economia”.
Além de expor alguns elementos que os fazem “críticos”, concluíram que para encontrar um novo modo de viver não é preciso sair do zero. Como sintetizou Maria Emília Pacheco, da FASE, não faltam práticas à margem da hegemonia, além de conceitos em construção – o bem-viver, os bens-comuns, o decrescimento -; valores sendo reforçados, como a justiça ambiental; e lógicas que não se regem pela subordinação direta, como a economia do cuidado – para a qual apontam as feministas – e a economia da reciprocidade, seguida por comunidades tradicionais e camponesas ao redor do globo. Também a insurgência de novos direitos, estes coletivos, em oposição aos mecanismos de propriedade privada ou intelectual, podem ser levados em conta, somados aos direitos dos agricultores, dos povos e da natureza (como já figura em duas constituições latino-americanas).
O desafio, portanto, estará em tornar visíveis práticas tão plurais quando um encontro mundial do tamanho da Rio+20 aponta, exclusivamente, para a velha economia que vivemos, agora pintada de verde.
Avalanche verde
Algumas constatações eram consensuais àqueles que chegaram ao seminário realizado em uma das pequenas salas da antiga casa do centro de Porto Alegre que abriga o Instituto dos Arquitetos do Brasil. Uma delas, talvez a mais forte, era de que vivemos um ciclo de crises nunca antes experimentado pela humanidade.
Jean Marc von der Weid da ASPTA – Agricultura Familiar e Agroecologia, fez uma leitura do quadro atual acentuando as questões ligadas à agricultura: “parecemos olhar para as profecias de Nostradamus. As crises parecem estar se integrando e se fortalecendo umas às outras”. O economista enumerou alguns aspectos para mostrar como o modelo hegemônico de agricultura simplesmente é insustentável em longo prazo: os recursos minerais usados para fabricação de adubos nitrogenados estão desaparecendo; o modelo é completamente baseado em petróleo e não faltam questionamentos sobre os limites de sua exploração; a degradação do solo chega a níveis alarmantes: calcula-se que já atinge 22% das terras férteis do mundo. “Desaparecem ainda as culturas agrícolas tradicionais. Isso tem uma significação que vai além da perda ambiental e do material genético. Perdemos também o conhecimento. Esse é um problema grave para o futuro”, preocupa-se, lembrando que neste cenário, questões antigas e não resolvidas no Brasil, como a reforma agrária, são ainda mais necessárias.
Pablo Bertinant, do programa Cone Sul Sustentável, também falou do momento de crise, salientando os problemas da matriz energética mundial, ainda concentrada no petróleo, diante do aquecimento global. E sintetizou outro ponto de acordo – aliás, desde a convocatória do seminário: a crítica à economia verde. “Hoje a lógica de resolução de problemas é a mesma [da Eco 92], mas com um passo a mais, que é a economia verde”, afirmou. Para Bertinat, calcular o “capital natural” e argumentar que a medida é necessária para que as corporações tenham interesse na preservação é um erro. Afinal, revela, “a finalidade deste processo é encontrar outros meios para a acumulação de capital com o objetivo de superar a atual crise financeira. E fica claro que nada muda no sistema atual”.
Lúcia Ortiz, do Núcleo Amigos da Terra Brasil, seguiu no mesmo sentido, enfatizando uma aceleração dos processos e também a diminuição de transparência no que diz respeito às negociações e conferências das Nações Unidas. Lúcia também destacou que as corporações, dentro e fora da ONU, reafirmam seu poder. E que se antes a apropriação era dos bens públicos – via privatização – agora é dos bens comuns – via abertura de mercados na economia verde. Para ilustrar a percepção de Lúcia, podemos voltar ao documento base da Rio+20: em diversas ocasiões o Rascunho Zero enfatiza “o importante papel do setor privado no caminho para o desenvolvimento sustentável”.
Mas a ação dos governos, que têm por trás tantos interesses e com diferentes níveis de força, também foram questionados. Camila Moreno, da Fundação Heinrich Boell, analisa que “sem a ação autoritária e impositiva dos governos as corporações não poderiam fazer nada”. Ela enumerou diversos processos – seja as sínteses e documentos elaborados por agências da ONU, por coalizões de bancos ao por agências de consultoria que atuam junto à corporações e governos – que mostraram o avanço da chamada economia verde como realidade, agora em processo de regulamentação – inclusive no Brasil, por exemplo com a tramitação de lei para o pagamento por serviços ambientais.
Vale dizer que já existe, inclusive, uma metodologia para medir o valor de mercado do que antes era considerado bem comum: ar, água, biodiversidade, etc. A metodologia está em um estudo chamado Teeb (A economia dos Ecossistemas e da Biodiversidade, na sigla em inglês), vinculado ao Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente e lançado na última Conferência da Convenção sobre Diversidade Biológica em 2010. “O Brasil pode transformar, por exemplo, o carbono estocado na floresta Amazônica em uma variável macroeconômica. Ou seja, a economia verde brasileira ‘vai bombar’ porque subitamente a água doce vai ser somada às riquezas nacionais. Nada contra contabilizar. A questão é: dentro de qual projeto isso se insere e para quais fins? E os fins são lançar isso em um mercado de commodities e, pior ainda, de financeirização e de uma série de produtos financeiros atrelados a estas commodities”.
Outro ponto especialmente destacado por Pablo Sólon é o papel do Brasil na conferência. O ex-diplomata boliviano lembra que o país será mais que um simples anfitrião, inclusive porque também quer “negociar seu pedaço” em um novo negócio no qual pode ser naturalmente privilegiado pelos recursos que estão em seu território. A isso, o canadense Pat Mooney, do ETC Group, adicionou que a pressão sobre o Brasil estará duplicada na Rio+20 visto que hoje brasileiros ocupam dois cargos chaves na ONU nesta área: José Graziano da Silva é diretor geral da FAO, órgão para alimentação e portanto, a cargo de parte da diversidade biológica do mundo e, agora, a cargo de outra parte, Bráulio Ferreira de Souza Dias, recém-escolhido como Secretário Executivo do Secretariado da Convenção sobre Diversidade Biológica. Mooney também lembrou que o mundo não pára de girar depois da Rio+20. Assim, aconselhou: “devemos estar atentos a outros encontros mundiais, como a próxima Conferência das Partes sobre Biodiversidade Biológica, onde podem ser concretizados os mecanismos para o mercado verde”.
Aposta nos “Territórios do Futuro”
Se o contexto geral é de crise – e do ponto de vista ambiental nunca se viu tanta degradação como nos últimos 20 anos – também podemos apontar como consenso entre os críticos à economia verde que está clara a necessidade de denúncia sobre os responsáveis pela tragédia anunciada.
Mas denunciar como? Denis Monteiro, da Articulação Nacional de Agroecologia, aponta um dos caminhos. Para ele, mais que levantar números é preciso mostrar à sociedade a gravidade do problema a partir do concreto: as secas, as enchentes das grandes cidades, as doenças, a poluição, os agrotóxicos que contaminam alimentos, água, solo. “Tudo isso já é sentido com clareza pelas populações em seus territórios e mostra que as crises realmente estão aí”, comenta. Do mesmo modo, também as soluções estão nos territórios, como aponta Jean Pierre Leroy, da FASE, ao tratar de um conceito com crescente importância, o de bens comuns, que inclusive figura no documento de convocação da Cúpula dos Povos. Para ele, também os territórios podem ser considerados como bens comuns, aqueles bens, materiais ou não, geridos por grupos para bem de todos, lugares de conflito e relações sociais.
Na opinião de Jean Marc, da ASPTA, a diferença entre hoje e há 20 anos está, entre outros pontos, na solidez das práticas que respeitam as pessoas e o ambiente, como a produção de alimentos saudáveis na agroecologia. São muitas as experiências espalhadas pelo mundo. Soma-se a isso que são numerosas as pesquisas sérias, inclusive financiadas pela própria ONU, que comprovam serem soluções para os problemas ambientais e sociais que enfrentamos atualmente. É preciso tornar visíveis essas práticas que também se materializam nos territórios. No entanto, a questão não se restringe a visibilidade: ao argumentar que a agroecologia só é possível com reforma agrária e campesinato, Jean Marc nos lembra que o debate sobre as alternativas está no plano político.
Jean Marc não foi o único a enfatizar a importância da agricultura familiar para o futuro do planeta. Enquanto Pat Mooney desfiou uma enorme quantidade de estatísticas que mostram como a agricultura familiar é melhor diante das mudanças climáticas por ser mais flexível e adaptável, preservar a biodiversidade, conservar os solos, etc; Silvia Ribeiro, também do ETC Group, foi taxativa ao mencionar o trabalho dos campesinos, que ao contrário do que pode sugerir o marketing das empresas, ainda alimenta certa de 80% da população mundial: “A agricultura ecológica é imprescindível”.
Fátima Mello, da FASE, também aposta na materialidade para denunciar e mostrar as alternativas. Por isso construir na Cúpula das Povos um “Território do Futuro”, mostrando as práticas que apontam para outra economia. “Mas é preciso que a sociedade saiba que o que chamamos alternativo, como a agroecologia, nunca será massificado se isso não passar pela política”, afirmou lembrando que lutas como o levante de Chiapas no México em 94 e coalizões contra o Nafta, que desembocaram nos protestos de Seatle em 1999 e no Fórum Social Mundial no início do século, partiram também de situações muito concretas e mudaram o contexto político depois de uma década. A Cúpula dos Povos, na opinião de Fátima, pode ser um ponto importante para a acumulação de força política, para novas convergências e para abrir um grande diálogo com a sociedade sobre os rumos possíveis. Não é por outro motivo, comenta, que o Comitê Facilitador da Cúpula dos Povos, do qual faz parte, escolheu realizar a Cúpula no Aterro do Flamengo – quando o evento oficial da ONU será no Riocentro, distante da área central do Rio de Janeiro. Com isso, o debate sobre outra economia segue para um espaço reconhecidamente público, que poderíamos considerar bem comum da cidade.
O seminário “Rumo à Rio+20: Por uma outra economia” foi organizado pela Articulação Nacional de Agroecologia (ANA), ASPTA – Agricultura Familiar e Agroecologia; FASE – Solidariedade e Educação; FBSSAN – Fórum Brasileiro de Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional; FBES – Fórum Brasileiro de Economia Solidária e Núcleo Amigos da Terra Brasil e SOF – Sempreviva Organização Feminista.
Fonte: Instituto Carbono Brasil/FASE
As possíveis definições constam em outras peças diplomáticas e no discurso de corporações e governos. E não parecem apontar para um modo de viver radicalmente diferente do atual, mas para o aprofundamento da forma de produção e consumo dominante no mundo, que gera desigualdades entre países e povos, além de múltiplas crises, como a ambiental.
Pablo Sólon, que foi embaixador da Bolívia na ONU, lembrou que no momento da convocatória, a Rio+20 deveria ter sido, fundamentalmente, um espaço de avaliação dos avanços de cumprimento da Agenda 21 (acordada na Eco 92) e, quem sabe, motivadora de seu fortalecimento. A economia verde, no primeiro momento, era um tema em discussão. Algo secundário. Por pressões de diversos atores, especialmente países da União Européia, se transformou em central – mesmo, segundo Sólon, não tendo aceitação unânime entre as nações.
Na opinião dele, a falta de definição do termo “economia verde” para a Rio+20 é um enorme risco. E não considera que estejamos falando apenas de um novo slogan: “Os entusiastas dizem que economia verde é tudo: separar o lixo, indústrias limpas, estar com Pachamama, vender créditos de carbono, tudo isso pode ser economia verde. E por isso não definir esta economia no documento. Se aceitamos isso, assinamos um cheque em branco”, avalia o ex-embaixador, explicando que a Rio+20 não será o lugar de fechar tratados. “O que querem é o mandato para formular a arquitetura institucional necessária a criar este mercado de bens intangíveis. Depois, o processo vai se dar praticamente sozinho”, vaticina. E segue: “Se não temos uma posição categórica de repúdio à economia verde seremos cúmplices do lançamento de um dos maiores negócios de roubo da natureza que será lançado no Rio de Janeiro, em junho. É muito complicado porque há muitos interesses e um mercado multimilionário que não vai resolver nada, mas eles esperam, vai reverter as taxas decrescentes de lucro do sistema capitalista”.
E foi em busca de uma “outra economia” que representantes de entidades e movimentos sociais “críticos à economia verde” se reuniram no seminário “Rumo à Rio+20: Por uma outra economia”.
Além de expor alguns elementos que os fazem “críticos”, concluíram que para encontrar um novo modo de viver não é preciso sair do zero. Como sintetizou Maria Emília Pacheco, da FASE, não faltam práticas à margem da hegemonia, além de conceitos em construção – o bem-viver, os bens-comuns, o decrescimento -; valores sendo reforçados, como a justiça ambiental; e lógicas que não se regem pela subordinação direta, como a economia do cuidado – para a qual apontam as feministas – e a economia da reciprocidade, seguida por comunidades tradicionais e camponesas ao redor do globo. Também a insurgência de novos direitos, estes coletivos, em oposição aos mecanismos de propriedade privada ou intelectual, podem ser levados em conta, somados aos direitos dos agricultores, dos povos e da natureza (como já figura em duas constituições latino-americanas).
O desafio, portanto, estará em tornar visíveis práticas tão plurais quando um encontro mundial do tamanho da Rio+20 aponta, exclusivamente, para a velha economia que vivemos, agora pintada de verde.
Avalanche verde
Algumas constatações eram consensuais àqueles que chegaram ao seminário realizado em uma das pequenas salas da antiga casa do centro de Porto Alegre que abriga o Instituto dos Arquitetos do Brasil. Uma delas, talvez a mais forte, era de que vivemos um ciclo de crises nunca antes experimentado pela humanidade.
Jean Marc von der Weid da ASPTA – Agricultura Familiar e Agroecologia, fez uma leitura do quadro atual acentuando as questões ligadas à agricultura: “parecemos olhar para as profecias de Nostradamus. As crises parecem estar se integrando e se fortalecendo umas às outras”. O economista enumerou alguns aspectos para mostrar como o modelo hegemônico de agricultura simplesmente é insustentável em longo prazo: os recursos minerais usados para fabricação de adubos nitrogenados estão desaparecendo; o modelo é completamente baseado em petróleo e não faltam questionamentos sobre os limites de sua exploração; a degradação do solo chega a níveis alarmantes: calcula-se que já atinge 22% das terras férteis do mundo. “Desaparecem ainda as culturas agrícolas tradicionais. Isso tem uma significação que vai além da perda ambiental e do material genético. Perdemos também o conhecimento. Esse é um problema grave para o futuro”, preocupa-se, lembrando que neste cenário, questões antigas e não resolvidas no Brasil, como a reforma agrária, são ainda mais necessárias.
Pablo Bertinant, do programa Cone Sul Sustentável, também falou do momento de crise, salientando os problemas da matriz energética mundial, ainda concentrada no petróleo, diante do aquecimento global. E sintetizou outro ponto de acordo – aliás, desde a convocatória do seminário: a crítica à economia verde. “Hoje a lógica de resolução de problemas é a mesma [da Eco 92], mas com um passo a mais, que é a economia verde”, afirmou. Para Bertinat, calcular o “capital natural” e argumentar que a medida é necessária para que as corporações tenham interesse na preservação é um erro. Afinal, revela, “a finalidade deste processo é encontrar outros meios para a acumulação de capital com o objetivo de superar a atual crise financeira. E fica claro que nada muda no sistema atual”.
Lúcia Ortiz, do Núcleo Amigos da Terra Brasil, seguiu no mesmo sentido, enfatizando uma aceleração dos processos e também a diminuição de transparência no que diz respeito às negociações e conferências das Nações Unidas. Lúcia também destacou que as corporações, dentro e fora da ONU, reafirmam seu poder. E que se antes a apropriação era dos bens públicos – via privatização – agora é dos bens comuns – via abertura de mercados na economia verde. Para ilustrar a percepção de Lúcia, podemos voltar ao documento base da Rio+20: em diversas ocasiões o Rascunho Zero enfatiza “o importante papel do setor privado no caminho para o desenvolvimento sustentável”.
Mas a ação dos governos, que têm por trás tantos interesses e com diferentes níveis de força, também foram questionados. Camila Moreno, da Fundação Heinrich Boell, analisa que “sem a ação autoritária e impositiva dos governos as corporações não poderiam fazer nada”. Ela enumerou diversos processos – seja as sínteses e documentos elaborados por agências da ONU, por coalizões de bancos ao por agências de consultoria que atuam junto à corporações e governos – que mostraram o avanço da chamada economia verde como realidade, agora em processo de regulamentação – inclusive no Brasil, por exemplo com a tramitação de lei para o pagamento por serviços ambientais.
Vale dizer que já existe, inclusive, uma metodologia para medir o valor de mercado do que antes era considerado bem comum: ar, água, biodiversidade, etc. A metodologia está em um estudo chamado Teeb (A economia dos Ecossistemas e da Biodiversidade, na sigla em inglês), vinculado ao Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente e lançado na última Conferência da Convenção sobre Diversidade Biológica em 2010. “O Brasil pode transformar, por exemplo, o carbono estocado na floresta Amazônica em uma variável macroeconômica. Ou seja, a economia verde brasileira ‘vai bombar’ porque subitamente a água doce vai ser somada às riquezas nacionais. Nada contra contabilizar. A questão é: dentro de qual projeto isso se insere e para quais fins? E os fins são lançar isso em um mercado de commodities e, pior ainda, de financeirização e de uma série de produtos financeiros atrelados a estas commodities”.
Outro ponto especialmente destacado por Pablo Sólon é o papel do Brasil na conferência. O ex-diplomata boliviano lembra que o país será mais que um simples anfitrião, inclusive porque também quer “negociar seu pedaço” em um novo negócio no qual pode ser naturalmente privilegiado pelos recursos que estão em seu território. A isso, o canadense Pat Mooney, do ETC Group, adicionou que a pressão sobre o Brasil estará duplicada na Rio+20 visto que hoje brasileiros ocupam dois cargos chaves na ONU nesta área: José Graziano da Silva é diretor geral da FAO, órgão para alimentação e portanto, a cargo de parte da diversidade biológica do mundo e, agora, a cargo de outra parte, Bráulio Ferreira de Souza Dias, recém-escolhido como Secretário Executivo do Secretariado da Convenção sobre Diversidade Biológica. Mooney também lembrou que o mundo não pára de girar depois da Rio+20. Assim, aconselhou: “devemos estar atentos a outros encontros mundiais, como a próxima Conferência das Partes sobre Biodiversidade Biológica, onde podem ser concretizados os mecanismos para o mercado verde”.
Aposta nos “Territórios do Futuro”
Se o contexto geral é de crise – e do ponto de vista ambiental nunca se viu tanta degradação como nos últimos 20 anos – também podemos apontar como consenso entre os críticos à economia verde que está clara a necessidade de denúncia sobre os responsáveis pela tragédia anunciada.
Mas denunciar como? Denis Monteiro, da Articulação Nacional de Agroecologia, aponta um dos caminhos. Para ele, mais que levantar números é preciso mostrar à sociedade a gravidade do problema a partir do concreto: as secas, as enchentes das grandes cidades, as doenças, a poluição, os agrotóxicos que contaminam alimentos, água, solo. “Tudo isso já é sentido com clareza pelas populações em seus territórios e mostra que as crises realmente estão aí”, comenta. Do mesmo modo, também as soluções estão nos territórios, como aponta Jean Pierre Leroy, da FASE, ao tratar de um conceito com crescente importância, o de bens comuns, que inclusive figura no documento de convocação da Cúpula dos Povos. Para ele, também os territórios podem ser considerados como bens comuns, aqueles bens, materiais ou não, geridos por grupos para bem de todos, lugares de conflito e relações sociais.
Na opinião de Jean Marc, da ASPTA, a diferença entre hoje e há 20 anos está, entre outros pontos, na solidez das práticas que respeitam as pessoas e o ambiente, como a produção de alimentos saudáveis na agroecologia. São muitas as experiências espalhadas pelo mundo. Soma-se a isso que são numerosas as pesquisas sérias, inclusive financiadas pela própria ONU, que comprovam serem soluções para os problemas ambientais e sociais que enfrentamos atualmente. É preciso tornar visíveis essas práticas que também se materializam nos territórios. No entanto, a questão não se restringe a visibilidade: ao argumentar que a agroecologia só é possível com reforma agrária e campesinato, Jean Marc nos lembra que o debate sobre as alternativas está no plano político.
Jean Marc não foi o único a enfatizar a importância da agricultura familiar para o futuro do planeta. Enquanto Pat Mooney desfiou uma enorme quantidade de estatísticas que mostram como a agricultura familiar é melhor diante das mudanças climáticas por ser mais flexível e adaptável, preservar a biodiversidade, conservar os solos, etc; Silvia Ribeiro, também do ETC Group, foi taxativa ao mencionar o trabalho dos campesinos, que ao contrário do que pode sugerir o marketing das empresas, ainda alimenta certa de 80% da população mundial: “A agricultura ecológica é imprescindível”.
Fátima Mello, da FASE, também aposta na materialidade para denunciar e mostrar as alternativas. Por isso construir na Cúpula das Povos um “Território do Futuro”, mostrando as práticas que apontam para outra economia. “Mas é preciso que a sociedade saiba que o que chamamos alternativo, como a agroecologia, nunca será massificado se isso não passar pela política”, afirmou lembrando que lutas como o levante de Chiapas no México em 94 e coalizões contra o Nafta, que desembocaram nos protestos de Seatle em 1999 e no Fórum Social Mundial no início do século, partiram também de situações muito concretas e mudaram o contexto político depois de uma década. A Cúpula dos Povos, na opinião de Fátima, pode ser um ponto importante para a acumulação de força política, para novas convergências e para abrir um grande diálogo com a sociedade sobre os rumos possíveis. Não é por outro motivo, comenta, que o Comitê Facilitador da Cúpula dos Povos, do qual faz parte, escolheu realizar a Cúpula no Aterro do Flamengo – quando o evento oficial da ONU será no Riocentro, distante da área central do Rio de Janeiro. Com isso, o debate sobre outra economia segue para um espaço reconhecidamente público, que poderíamos considerar bem comum da cidade.
O seminário “Rumo à Rio+20: Por uma outra economia” foi organizado pela Articulação Nacional de Agroecologia (ANA), ASPTA – Agricultura Familiar e Agroecologia; FASE – Solidariedade e Educação; FBSSAN – Fórum Brasileiro de Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional; FBES – Fórum Brasileiro de Economia Solidária e Núcleo Amigos da Terra Brasil e SOF – Sempreviva Organização Feminista.
Fonte: Instituto Carbono Brasil/FASE
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